Embaixador da Autoridade Nacional Palestina no Brasil condena ação de Israel, postura dos EUA e defende reforma na ONU
Por Juliana Cézar Nunes
Na discreta casa da Embaixada da Autoridade Nacional Palestina no Brasil, localizada em um bairro nobre de Brasília, Ibrahim Al Zeben acompanha os bombardeiros de Israel à Faixa de Gaza. Na sala principal, entre silêncios e suspiros de revolta, o embaixador assiste à cobertura da rede árabe Al Jazeera. Antes de iniciar a entrevista, pede um instante para ouvir as últimas notícias e ler em árabe, no pé da tela, a nova contagem de mortos e feridos. Às 14h45 do dia 12 de janeiro, segunda-feira, são 917 mortos e 4.260 feridos. “Viu essas bombas, são de fósforo branco, causam dor profunda e são mortais. Estão proibidas internacionalmente”, destaca Al Zeben, enquanto a TV traz imagens de crianças palestinas com rostos e corpos queimados.
Do Brasil, o embaixador palestino atua na articulação para reforçar o apoio dos países latino-americanos à causa de seu povo. Jornalista, formado em Cuba, ele está desde 1975 na carreira diplomática. Cresceu em um campo de refugiados após a família ter sido expulsa de casa, em Haifa, uma das cidades mais próximas da Faixa de Gaza. Al Zeben já esteve, a trabalho, na Nicarágua, no Peru, na Bolívia, na Colômbia, na Venezuela e em Cuba. Pela segunda vez no Brasil, ocupa há nove meses o posto de embaixador. Falando em português, com sotaque espanhol, ele condena a ação do governo de Israel e o posicionamento dos Estados Unidos. Lamenta a fragilidade da ONU e defende uma reforma imediata. Para ele, os países árabes têm dado exemplo de coesão no tratamento do conflito entre israelenses e palestinos. Recorrendo à sabedoria árabe, ele defende uma mediação efetiva e generosa. “Já estávamos conversando com o Hamas com a ajuda dos nossos irmãos egípcios e tínhamos avançado. Essa agressão, essa barbárie interrompe tudo, interrompe a vida de todo um povo. Nós todos condenamos e nos sentimos agredidos e massacrados.”
Como embaixador da Autoridade Nacional Palestina no Brasil, que avaliação o senhor faz sobre o posicionamento do país com relação à ofensiva de Israel à Faixa de Gaza?
O Brasil mostrou muito interesse. Adotou uma posição favorável à paz no Oriente Médio. E em todos os níveis. No nível oficial, a Presidência e o Itamaraty fizeram declarações oportunas. Um pronunciamento do presidente Lula e quatro do Itamaraty.
O senhor Celso Amorim (ministro das Relações Exteriores) acaba de voltar da região após levar ajuda humanitária. Portanto, quanto à posição oficial brasileira, consideramos satisfatória. No nível popular, sindical, organizações comunitárias, partidos políticos, houve um acompanhamento massivo, em todas as cidades, povoados do Brasil. E os protestos seguem em diferentes cidades. Em São Paulo, 7 mil pessoas saíram à rua, na Avenida Paulista. Essas manifestações condenam a agressão. Elas são mais abertas e audazes na hora de condenar isso como terrorismo de Estado exigindo julgar os responsáveis por esse massacre.
E a reação dos outros países, como o senhor avalia?
No nível popular, a reação foi com atitude e muita determinação, em todos os países, incluindo EUA, Espanha, França, Itália. Em todos os países houve uma reação imediata, de pessoas horrorizadas pelos massacres que se cometem dentro da Faixa de Gaza. Essa guerra que praticamente se pode enquadrar como um crime de guerra, pelo excessivo uso da força, uso de armas proibidas internacionalmente, como bombas de fósforo e de fragmentação. A condenação tem sido total, enquanto violação dos direitos humanos. Civis são alvos dessa ofensiva. Nem as escolas, os hospitais, os centros de estudo foram poupados. Quanto à posição do mundo oficial, sem dúvida temos dificuldades.
O senhor vê omissão e conivência com as atrocidades que acontecem na região?
Sim. A vontade oficial se mostra nas instituições. Temos a Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra e temos a Assembleia-Geral e o Conselho de Segurança. Na aplicação das resoluções, houve ambiguidade política e determinação política negativa. Quando falo de ambiguidade, não vou mencionar países. Quando falo de determinação, falo da posição negativa da administração dos Estados Unidos, que impede uma atitude séria, direta e efetiva, que ponha fim a essa agressão. A abstenção dos EUA significa que eles não têm posição, se abster é não ter posição. Isso quer dizer que ante todos os massacres que Israel está cometendo contra os palestinos, contra a Faixa de Gaza, contra todos os palestinos, não só contra Hamas, os EUA não têm opinião? E esta nós consideramos como uma determinação a favor do Estado de Israel. Quando um país como os EUA, uma superpotência, não toma a decisão que deve, a chacina segue.
A ONU sai desmoralizada desse episódio?
Certamente. Um dos massacres foi contra uma escola das Nações Unidas em Gaza. Foram assassinadas 45 pessoas, a maioria crianças e mulheres. Israel acusou a Nações Unidas de ter permitido que o Hamas usasse essas escolas. Dois dias mais tarde Israel reconheceu que o ataque foi um erro. E quantos e quantos “erros”, entre aspas, vão acontecer? Eu acho que são intencionais. É uma guerra de extermínio que Israel está dirigindo contra o povo palestino na sua totalidade. O direito internacional é que está sendo assassinado, não só o povo palestino. Estão assassinando a Quarta Convenção de Genebra, as resoluções das Nações Unidas, estão burlando a vontade popular do mundo inteiro e, até mesmo, estão burlando os países. É lamentável que não se tome uma decisão de caráter obrigatório. O Conselho de Segurança pode obrigar o agressor a parar sua agressão ou pode tomar uma medida, uma represália imediata. Isso aconteceu no caso de Ruanda, no caso da Sérvia, sempre quando o Conselho de Segurança intervém diretamente para pôr fim em um conflito. Desde 1948 até o dia de hoje, o Conselho de Segurança não tomou nenhuma resolução com caráter obrigatório para a região. É por isso que Israel se sente livre de não cumprir. A ONU precisa ser transformada. Desde 1947, este organismo internacional está lidando com o conflito e não consegue resolver. Quantas vezes um país consegue enfrentar a vontade internacional? Observe as votações que têm a ver com o conflito e vocês vão achar quatro países sempre votando contra: Estados Unidos, Israel, Macronésia e Ilhas Marshall. São 192 países a favor de algo e quatro não. Como é possível? Esse organismo precisa ser modificado, transformado, de forma que possa representar a vontade política internacional.
Até que ponto os interesses dos EUA e seus aliados somam-se aos de Israel para tornar inviável a construção da paz?
Os EUA têm uma posição permanente desde a criação do Estado de Israel até hoje. É uma posição alinhada, a favor de Israel, a favor da ocupação do território palestino e dos territórios árabes. Temos esperança que isso mude. Essa não é uma posição correta de uma superpotência. Existe uma sabedoria que cabe aqui: um senhor perde três moedas de ouro e descobre depois de muitos anos que elas estão com outro. E vai atrás. Diz: “Essas moedas são minhas, tenho testemunhas”. O outro diz que há anos está desfrutando e trabalhando: “Portanto, também são minhas, por direito à antiguidade”. Obviamente, alguém tem de resolver. Eles vão ao sábio, velho da tribo, que escuta os dois e tira do seu bolso uma moeda de ouro e dá duas moedas a cada um. A sabedoria é que para resolver um conflito cada parte vai ter de ceder, inclusive o mediador.
E quem seria esse mediador?
O problema está justamente em ter um mediador. Sábio, honesto e generoso. As duas partem com vontade política e com um mediador podem chegar à paz. E nesse caso estamos falando do Conselho de Segurança, Estados Unidos, União Europeia, o mundo inteiro, que podem mediar, mas não para tirar vantagem. Mediar é ser generoso. Os EUA estão tirando muita vantagem nesta guerra. Eles estão experimentando armas novas, ao vivo. Para demonstrar de uma maneira muito macabra, muito criminosa, a eficiência dessas armas. Esta guerra vai acabar, vai terminar. E vamos exigir uma investigação a fundo. Essas são armas internacionalmente proibidas. Não podemos admitir que o complexo militar e industrial, para promover suas armas, use o nosso povo, as nossas crianças, que saem praticamente carbonizadas. A paz é possível e nós estamos determinados pela paz. Por uma paz justa, uma paz que repara os danos e prejuízos. São 60 anos de diáspora, 60 anos de falta de esperança, de vida como refugiados em outros países, 60 anos praticamente sem identidade ou com nossa identidade e infraestrutura econômica destruída. Israel é a causa da nossa diáspora. Israel e alguns países ocidentais, entre eles EUA e Inglaterra. Nenhum dinheiro do mundo recompensa a morte. Só que os países responsáveis têm a obrigação de reparar no possível, têm essa obrigação, e Israel tem essa obrigação. É o país que ocupa nosso espaço, é o país que está massacrando, é o país que impede até agora a criação do nosso Estado. Cria muros, cria assentamento, impede nosso movimento, assassina nossas lideranças. Tem de responder pelos crimes cometidos.
Qual é o projeto das comunidades árabes para a região, para o Estado da Palestina? Existe unidade o bastante entre os povos e as forças políticas para se chegar a ele?
Sim, há consenso. Existem diferentes pontos de vista, mas isso não tem afetado uma posição uniforme. Desde 2002 até o ano passado, os países árabes, em sua totalidade, adotaram uma resolução a favor da paz, chamada Iniciativa Árabe de Paz. Essa iniciativa foi levada também à Conferência Islâmica. Temos 57 países árabes e islâmicos que têm em sua mão uma posição unificada, unânime, dirigida a Israel e ao mundo, que diz: senhores, paz é a troca de territórios. Significa que se Israel se retira dos territórios ocupados, esses países árabes na sua totalidade estabelecem relações normais com Israel. Qual é o resultado e qual é a resposta de Israel? Em primeiro lugar, Israel não se manifestou oficialmente a esse posicionamento por parte dos países árabes. É como na América Latina, que pode ter consenso quanto a um tema central, mas tem algumas diferenças em termos de interpretação. Isso também é o que existe no mundo árabe. Temos dificuldades, mas em geral, em nível oficial, não existem, não se manifestam no oficial essas pequenas diferenças que podem existir. Isso não prejudica. As cúpulas árabes se reúnem, o Conselho de Chanceleres se reúne e debate, chega a conclusões. Agora, tiveram uma atitude interessante no Conselho de Segurança, levaram proposta comum, estão trabalhando na direção correta.
Como a autoridade palestina reage aos disparos de foguetes do Hamas contra o território israelense? Houve mesmo hostilidade e até execuções por parte de membros do Hamas contra o Fatah (partido palestino)?
Nós tivemos, no seio da pátria palestina, dificuldades, mas estávamos no caminho de resolver. Temos dificuldades internas entre a ANP e o Hamas, OLP e Hamas, Fatah e Hamas. Pela atitude do Hamas dentro da Faixa de Gaza. Nós consideramos que, apesar dessas dificuldades, havia espaço para a discussão e o diálogo, e não o confronto. Consideramos que unicamente o diálogo poderia resolver. Já estávamos conversando com o Hamas com a ajuda dos nossos irmãos egípcios e tínhamos avançado. Essa agressão, essa barbárie interrompe tudo, interrompe a vida de todo um povo. E isso merece a condenação de todos. Nós todos condenamos e nos sentimos agredidos e massacrados. A causa principal desse conflito não é que o Hamas largou uns foguetes caseiros em Israel, ou que o Hamas não respeitou a trégua. Isso não é verdade. A causa é a ocupação militar do território palestino. É impedir em todos esses anos que a luz de esperança ilumine nosso caminho.
O ódio mútuo entre palestinos e judeus é maior do que qualquer possibilidade de paz ou há alguma chance de se consolidar um mapa em que caibam, pacificamente, um Estado de Israel e um Estado Palestino?
Temos três vias de solução: religiosa, pelo direito internacional ou a solução pela força, o que está fazendo Israel. O conflito não é religioso, não dá para resolver o problema com esse enfoque. O enfoque é político. Pela guerra também ficou demonstrado que não dá para resolver. Quantos massacres eles cometeram desde aquele 9 de abril de 1948 quando os massacres começaram, antes da criação do Estado? Pela força, queriam fazer a limpeza étnica. Pela força, eles conseguiram muito, só que tem algo muito apreciado que eles não conseguiram, é a paz. Não sei quantos palestinos vão ter de cair até que Israel perceba que não pode seguir burlando, massacrando, pela força eles não vão conseguir. Israel leva 60 anos massacrando e bombardeando o povo palestino. Eles sabem perfeitamente que o povo palestino não vai levantar as bandeiras brancas. Estamos com dor, muita dor. Mas nós não vamos levantar bandeiras brancas. Somos um povo que está reivindicando seus direitos legítimos, a uma vida digna. Isso não vai mudar até conseguir esses direitos legítimos. De geração a geração, a gente está trabalhando nisso. Nós não desafiamos ninguém, não agredimos. Nós fomos agredidos. Eles com sua negligência, com sua negativa, eles apagaram toda a luz de esperança para o povo palestino. O que dá para esperar de alguém vendo essas imagens? O que dá pra esperar de alguém que perde toda a sua família nesse bombardeio? Eles não são militares ou militantes. Como você vai convencer essa pessoa a acreditar na paz, nas Nações Unidas, na amizade ou na boa vontade do vizinho. Se em 60 anos o vizinho faz um massacre atrás do outro. E quando não há massacres, há muros, quando não há massacres e muros, há assassinatos políticos. É uma cadeia, uma lista grande de violações que praticamente está preenchendo toda a nossa vida de mágoas, de luto e acaba com qualquer esperança que deve ter qualquer povo para poder seguir. Embora tudo isso, acreditamos que a paz é possível se a contraparte tem vontade política. É lamentável que o mundo inteiro esteja contra esses ataques e uma boa maioria do povo de Israel esteja a favor. Como é possível? Existe uma loucura coletiva que a gente não consegue explicar, que precisa recorrer à psicanálise para poder entender.
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Para ler o artigo "Origens do Ódio" que acompanha a entrevista: http://www.revistadobrasil.net/rdb32/mundo.htm
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